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Para filósofo francês, violência é método ultrapassado.

A não-violência não é uma teoria idealista ou fora da realidade. A violência
é que é. Quem inverte o senso comum é o filósofo francês Jean-Marie Muller, que
pesquisa, há mais de 30 anos, a teoria da não-violência. Para ele, é preciso
experimentar um novo caminho para resolver os conflitos humanos. "A violência dá
exemplos em excesso de fracassos para que não tenhamos a inteligência de tentar
a não-violência", afirma.

Autor de 27 livros na área, Muller coloca em
prática o que prega. Em 1970, fez greve de fome para protestar contra a venda de
aviões Mirage ao governo militar brasileiro. Em 1972, participou da ação do
Batalhão da Paz, que conseguiu pôr fim aos testes nucleares a céu aberto
realizados pela França. Muller é fundador e diretor do Instituto de Pesquisas
sobre a Resolução Não-Violenta de Conflitos, que participa das reuniões da
defesa nacional francesa. Em São Paulo a convite da Associação Palas Athena, ele
concedeu a seguinte entrevista à Folha.

Folha - Como educar as
crianças para a não-violência?


Jean-Marie Muller - Antes,
gostaria de falar sobre a não-violência na educação. Ao longo da história, a
violência contra a criança foi considerada um meio de educar: pais e educadores
batiam nelas. Hoje, a violência por parte dos professores é proibida em muitos
países, mas é permitida nas famílias. A experiência e as pesquisas mostram que
crianças que apanham tornam-se pais violentos. Ao mesmo tempo, a criança precisa
da autoridade do adulto e não vamos permitir que ela faça tudo. É preciso
colocar limites e fazê-la compreender que é do interesse dela respeitar as
regras. É o que chamamos de regra de ouro, que é "não faça ao outro o que você
não quer que o outro faça com você". No fim das contas, é a educação do respeito
ao outro. Quando acontece o conflito entre duas crianças no pátio do recreio,
por exemplo, é preciso que o adulto intervenha e faça o que chamamos de
mediação. Nesse caso, trata-se de reunir as duas para uma
conversa.

Folha - Isso vale também para conflitos entre
adultos?


Muller - No essencial, sim. Se podemos fazer com que
as crianças compreendam a regra de ouro, esperamos que os adultos também o
façam. As pessoas devem entender que a violência é sempre um fracasso, um drama,
um sofrimento que jamais solucionará os conflitos humanos. Conflitos são
naturais, mas é preciso resolvê-los de forma que tenhamos dois ganhadores, seja
no nível da vida pessoal, na vida política em uma sociedade ou mesmo no nível
internacional.

Folha - A não-violência é diferente da passividade ou
da covardia?


Muller - Gandhi dizia que, se a escolha fosse
unicamente entre a violência e a covardia, ficaria com a primeira. Para ele, era
preferível que os indianos resistissem violentamente a aceitar a dominação. Ele
afirmava que havia muito mais coragem na não-violência do que na violência. Um
episódio que ilustra bem isso foi o que ocorreu com Rosa Park, a primeira mulher
que lançou a resistência dos negros nos EUA. Na época, os ônibus tinham lugares
reservados para os brancos. Um dia, ela se sentou em um desses lugares. Quando
um branco pediu que ela se levantasse, ela permaneceu sentada. Quando o condutor
do ônibus pediu o mesmo, ela continuou lá, e não se moveu nem quando os
policiais chegaram. Permanecer sentada exigia muita resistência, energia e
coragem. A covardia teria sido levantar-se.

Folha - O uso da violência
não é necessário nem para se defender de um ataque?


Muller - O
homem violento se defende sempre de um ataque. É sempre o outro que começou. No
conflito entre israelenses e palestinos, cada lado usa a violência para se
defender da violência do outro. Os dois justificam seus assassinatos pelos seus
mortos. É verdade que é preciso se defender. A questão é encontrar as
estratégias não violentas eficazes para isso. No nível pessoal, as artes
marciais são métodos não violentos de autodefesa. O aikido, por exemplo, permite
que um japonês pequenininho se defenda de um japonês enorme que tem uma espada.
No caso de Israel e Palestina, é evidente que a violência não vai resolver o
problema. Hoje, eles são praticamente incapazes de encontrar por si próprios uma
solução. É necessária uma mediação internacional. Seria preciso que centenas,
milhares de voluntários internacionais formados na resistência não violenta de
conflitos se dirijam para lá e usem os métodos de mediação no interior sociedade
civil.

Folha - Os jovens filhos de imigrantes que queimaram carros na
França poderiam ter usado métodos não violentos de
protesto?


Muller - Eu deveria dizer sim, mas isso seria fácil
demais. Não devemos reescrever a história. O que é necessário é compreender por
que houve essa violência. Esses jovens estão numa situação de ruptura social:
fracasso na escola, falta de trabalho, famílias desestruturadas, racismo. São
jovens a quem a palavra nunca foi dada. Para eles, a violência não é um meio de
ação: é uma forma de expressão, um grito de revolta que expressa o sofrimento e
a falta de esperança. E eu diria, contrariamente ao que diz o presidente da
França, que a primeira coisa que precisamos fazer é compreender, e a segunda,
proibir. Não são os policiais que devem resolver a situação. O que é grave é que
nós esperamos que os carros fossem queimados para cuidarmos dos problemas. O
governo tinha suprimido quase que a totalidade das subvenções para associações
sociais, tinha suprimido a polícia comunitária. Parece que eles vão restabelecer
isso tudo. Agora eu acredito que, depois dessa explosão de violência, seria
essencial que esses jovens pudessem encontrar outros meios de expressão não
violentos.

Folha - A construção de uma civilização não violenta é
possível?


Muller - Não vou responder que é impossível e sei
que não é suficiente responder que ela é possível. Vou dizer que ela é difícil.
Isso porque ela não vai acontecer naturalmente. Quando me perguntam se sou
otimista ou pessimista, cito o escritor francês George Bernanos, que dizia que o
otimista é um imbecil feliz e o pessimista, um imbecil infeliz. Recuso-me a
escolher entre duas formas de imbecilidade. O peso da herança da violência sobre
a sociedade é tão grande que não posso ser otimista. Mas não sou pessimista,
porque a violência não é uma fatalidade. Ela é construída pelas mãos dos homens.
Nossas mãos podem desconstruir a fatalidade da violência. Acredito que há lugar
para uma esperança. Nos oito dias que passei em São Paulo, encontrei muitas
pessoas dispostas a experimentar a não-violência. Certamente, sairei do Brasil
com mais esperança do que quando cheguei aqui.
A não-violência não é uma
teoria idealista ou fora da realidade. A violência é que é. Quem inverte o senso
comum é o filósofo francês Jean-Marie Muller, que pesquisa, há mais de 30 anos,
a teoria da não-violência. Para ele, é preciso experimentar um novo caminho para
resolver os conflitos humanos. "A violência dá exemplos em excesso de fracassos
para que não tenhamos a inteligência de tentar a não-violência",
afirma.

Autor de 27 livros na área, Muller coloca em prática o que prega.
Em 1970, fez greve de fome para protestar contra a venda de aviões Mirage ao
governo militar brasileiro. Em 1972, participou da ação do Batalhão da Paz, que
conseguiu pôr fim aos testes nucleares a céu aberto realizados pela França.
Muller é fundador e diretor do Instituto de Pesquisas sobre a Resolução
Não-Violenta de Conflitos, que participa das reuniões da defesa nacional
francesa. Em São Paulo a convite da Associação Palas Athena, ele concedeu a
seguinte entrevista à Folha.

Folha - Como educar as crianças
para a não-violência?


Jean-Marie Muller - Antes, gostaria de
falar sobre a não-violência na educação. Ao longo da história, a violência
contra a criança foi considerada um meio de educar: pais e educadores batiam
nelas. Hoje, a violência por parte dos professores é proibida em muitos países,
mas é permitida nas famílias. A experiência e as pesquisas mostram que crianças
que apanham tornam-se pais violentos. Ao mesmo tempo, a criança precisa da
autoridade do adulto e não vamos permitir que ela faça tudo. É preciso colocar
limites e fazê-la compreender que é do interesse dela respeitar as regras. É o
que chamamos de regra de ouro, que é "não faça ao outro o que você não quer que
o outro faça com você". No fim das contas, é a educação do respeito ao outro.
Quando acontece o conflito entre duas crianças no pátio do recreio, por exemplo,
é preciso que o adulto intervenha e faça o que chamamos de mediação. Nesse caso,
trata-se de reunir as duas para uma conversa.

Folha - Isso vale também
para conflitos entre adultos?


Muller - No essencial, sim. Se
podemos fazer com que as crianças compreendam a regra de ouro, esperamos que os
adultos também o façam. As pessoas devem entender que a violência é sempre um
fracasso, um drama, um sofrimento que jamais solucionará os conflitos humanos.
Conflitos são naturais, mas é preciso resolvê-los de forma que tenhamos dois
ganhadores, seja no nível da vida pessoal, na vida política em uma sociedade ou
mesmo no nível internacional.

Folha - A não-violência é diferente da
passividade ou da covardia?


Muller - Gandhi dizia que, se a
escolha fosse unicamente entre a violência e a covardia, ficaria com a primeira.
Para ele, era preferível que os indianos resistissem violentamente a aceitar a
dominação. Ele afirmava que havia muito mais coragem na não-violência do que na
violência. Um episódio que ilustra bem isso foi o que ocorreu com Rosa Park, a
primeira mulher que lançou a resistência dos negros nos EUA. Na época, os ônibus
tinham lugares reservados para os brancos. Um dia, ela se sentou em um desses
lugares. Quando um branco pediu que ela se levantasse, ela permaneceu sentada.
Quando o condutor do ônibus pediu o mesmo, ela continuou lá, e não se moveu nem
quando os policiais chegaram. Permanecer sentada exigia muita resistência,
energia e coragem. A covardia teria sido levantar-se.

Folha - O uso da
violência não é necessário nem para se defender de um
ataque?


Muller - O homem violento se defende sempre de um
ataque. É sempre o outro que começou. No conflito entre israelenses e
palestinos, cada lado usa a violência para se defender da violência do outro. Os
dois justificam seus assassinatos pelos seus mortos. É verdade que é preciso se
defender. A questão é encontrar as estratégias não violentas eficazes para isso.
No nível pessoal, as artes marciais são métodos não violentos de autodefesa. O
aikido, por exemplo, permite que um japonês pequenininho se defenda de um
japonês enorme que tem uma espada. No caso de Israel e Palestina, é evidente que
a violência não vai resolver o problema. Hoje, eles são praticamente incapazes
de encontrar por si próprios uma solução. É necessária uma mediação
internacional. Seria preciso que centenas, milhares de voluntários
internacionais formados na resistência não violenta de conflitos se dirijam para
lá e usem os métodos de mediação no interior sociedade civil.

Folha -
Os jovens filhos de imigrantes que queimaram carros na França poderiam ter usado
métodos não violentos de protesto?


Muller - Eu deveria dizer
sim, mas isso seria fácil demais. Não devemos reescrever a história. O que é
necessário é compreender por que houve essa violência. Esses jovens estão numa
situação de ruptura social: fracasso na escola, falta de trabalho, famílias
desestruturadas, racismo. São jovens a quem a palavra nunca foi dada. Para eles,
a violência não é um meio de ação: é uma forma de expressão, um grito de revolta
que expressa o sofrimento e a falta de esperança. E eu diria, contrariamente ao
que diz o presidente da França, que a primeira coisa que precisamos fazer é
compreender, e a segunda, proibir. Não são os policiais que devem resolver a
situação. O que é grave é que nós esperamos que os carros fossem queimados para
cuidarmos dos problemas. O governo tinha suprimido quase que a totalidade das
subvenções para associações sociais, tinha suprimido a polícia comunitária.
Parece que eles vão restabelecer isso tudo. Agora eu acredito que, depois dessa
explosão de violência, seria essencial que esses jovens pudessem encontrar
outros meios de expressão não violentos.

Folha - A construção de uma
civilização não violenta é possível?


Muller - Não vou
responder que é impossível e sei que não é suficiente responder que ela é
possível. Vou dizer que ela é difícil. Isso porque ela não vai acontecer
naturalmente. Quando me perguntam se sou otimista ou pessimista, cito o escritor
francês George Bernanos, que dizia que o otimista é um imbecil feliz e o
pessimista, um imbecil infeliz. Recuso-me a escolher entre duas formas de
imbecilidade. O peso da herança da violência sobre a sociedade é tão grande que
não posso ser otimista. Mas não sou pessimista, porque a violência não é uma
fatalidade. Ela é construída pelas mãos dos homens. Nossas mãos podem
desconstruir a fatalidade da violência. Acredito que há lugar para uma
esperança. Nos oito dias que passei em São Paulo, encontrei muitas pessoas
dispostas a experimentar a não-violência. Certamente, sairei do Brasil com mais
esperança do que quando cheguei aqui.


Folha de São Paulo - 01/12/05