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Princípios de Gandhi ajudam nos conflitos da vida prática.

Numa rua de São Paulo, um motorista dá a ré em local proibido e bate em um
carro em movimento. Na mesma hora, sai do veículo e, agressivo, tenta colocar a
culpa no outro condutor, com ameaças do tipo: "quem bate na traseira sempre está
errado". Para quem dirige em grandes cidades, cenas como essas são corriqueiras.
Dessa vez, no entanto, o desfecho foi incomum.


O dentista Luiz Henrique Góes, 42, que estava no outro carro, nem se
levantou. Respirou, manteve a calma e esperou o outro se tranqüilizar. No final,
teve o prejuízo ressarcido, e o motorista chegou a agradecê-lo pela forma como
agiu. "Nessas horas, a respiração tem uma força incrível. O melhor é esperar a
pessoa extravasar e, num tom de diálogo, argumentar. O cara estava agressivo, e
eu não poderia agir com as mesmas armas que ele", diz o dentista.


Luiz Henrique Góes é adepto da aplicação cotidiana das teorias de
não-violência, pouco praticadas em situações de estresse, mas conhecidas há
tempos no Ocidente, principalmente pela ação do indiano Mahatma Gandhi
(1869-1948).


Além de freqüentar cursos e ler livros sobre o tema, o dentista tenta levar o
que aprende para a vida prática. Voluntariamente, dá palestras em escolas
públicas sobre movimentos históricos não violentos. Com as pessoas com quem
convive, procura não levantar a voz e busca o diálogo para resolver impasses.
"Somos tomados facilmente por uma resposta violenta. É um exercício que exige
esforço e concentração", afirma.


De fato, para Gandhi, o princípio do satyagraha (nome sânscrito usado para
definir sua filosofia de não-violência, que significa "busca da verdade"),
aplicado em uma série de estratégias pacíficas que culminaram na independência
de seu país em relação ao Império Britânico, era, mais do que apenas um
instrumento de protesto político, um modo de vida. Conhecido por terminar rixas
comunais só com sua presença, o indiano buscava a paz interior em ações como
passar um dia da semana em silêncio, jejuar com freqüência e comer apenas o
suficiente para satisfazer as necessidades do corpo humano.


Mais de 50 anos após a morte de Gandhi, sua filosofia vem sendo estudada e
incorporada no Ocidente por indivíduos que, como Luiz Henrique, tentam dar sua
contribuição pessoal para a criação de uma cultura da paz. Nesse caso,
estratégias de ação não violenta que serviram para libertar um país são usadas
para resolver pequenos conflitos, de impasses com os filhos a problemas no
trabalho. A premissa é que os conflitos são inevitáveis, mas a forma de agir com
eles não precisa ser violenta.


"Somos governados pela idéia de que a violência é necessária, legítima e
honrada. Só que a violência jamais trará uma resolução para os problemas
humanos. Todos conhecemos o semblante de Gandhi, mas precisamos ir mais longe e
estudar seu pensamento e sua ação. Isso deveria ser ensinado nas escolas",
afirma o filósofo francês Jean-Marie Muller, fundador e diretor do Instituto de
Pesquisas sobre a Resolução Não Violenta de Conflitos, com sede em Montreuil, na
França.


E por violência entenda-se não só uma agressão física mas uma série de outros
comportamentos, como a agressão verbal, a humilhação, o preconceito e o abuso de
poder. "Podemos provocar violências terríveis sem jamais atingir uma pessoa
fisicamente. A agressão física é a última manifestação de todo um repertório de
valores que permite desqualificar o outro e submetê-lo. Esse repertório tem que
ser desconstruído por meio da cultura da paz", afirma Lia Diskin, co-fundadora
da Associação Palas Athena, em São Paulo. O espaço oferece diversos cursos que
abordam a não-violência na teoria e na prática.


A "regra de ouro" do princípio da não-violência é uma frase que todo mundo
conhece, mas que poucos conseguem colocar em prática de fato: "Não faça aos
outros o que não gostaria que eles fizessem a você". Isso, segundo Diskin, não
significa omitir-se, submeter-se ou aceitar os fatos de forma passiva.
"Compreender uma idéia que contraria meus interesses não quer dizer aceitá-la. A
questão é chegar a uma solução que seja satisfatória para ambos", diz.


À primeira vista, a estratégia usada pela psicoterapeuta e coaching Sheila
Busato, 46, para reverter um conflito no ambiente de trabalho pode parecer
passiva. Nova em uma empresa, ela não revidou quando começou a ser hostilizada
pelos outros funcionários devido a intrigas. "Assumi uma atitude de cooperação
com o grupo. Não foi uma omissão, mas algo pensado estrategicamente. Foi difícil
não reagir. Mas, devagar, reverti a situação e as pessoas que nem me conheciam e
já me odiavam hoje me aceitam muito bem", conta ela, dizendo que o
aprofundamento na não-violência a ajudou em vários setores da vida, como na
relação com as filhas adolescentes.


"Muitos pais pensam que são donos da verdade. A gente controla a vida da
criança e leva susto quando ela cresce e se torna independente. Essas
ferramentas me ajudaram a mudar essa atitude e a resolver os conflitos com elas
por meio do diálogo e da tolerância", diz.


Folha de São Paulo - Publicação -
01/12/05